quarta-feira, junho 01, 2005

Acordo mais cedo e visto-me apressado. O dia clareia lá fora enquanto visto as minhas roupas de pupilo. Saio do quarto e vou directamente à cozinha para almoçar. Josefa serve-me o sempre especial pequeno almoço quando estou sozinho, como se a maoir quantidade de comida me fizesse companhia. Agarro os livros e saio em direcção à casa do Professor Guerra. Atravesso ruas cheias de gente inútil atarefadas nas suas míseras vidas. Chego à imponente morada do meu tutor e habilmente abro o portão e sigo sem fazer barulho à porta. Bato ao de leve para o caso de ele ainda estar a dormir. Amanda prontamente me abre a porta enquanto limpa as mãos ao pano que sempre traz à cinta.
-O Senhor Professor ainda não se levantou, nem sei se lhe dará lição hoje.- a minha desilusão torna-se bem clara na minha cara e a velha empregada sentindo-o prontamente me consoloa-Mas ele ha-de vir não se preocupe, quer que lhe leve alguma coisa para comer à sala?
-Obrigado, Amanda. Eu já almocei, vou me preparando para a lição.
Ela sai então para a cozinha e eu habituado à casa sigo em silêncio para o escritório. O cheiro à madeira caracteristico das estantes invade-me as narinas e acalma-me ao dar-me um sentido de segurança. Sento-me na mesa que praticamente me pertence e rapidamente abro as gastas sebentas procurando o que deixei inacabado. Deixo a mão correr resolvendo o que não vejo porque a minha mente divaga ainda.
Ontem ´quando voltei fui ter com meu pai na esperança de conseguir alguma informação. Ofereço-me várias vezes para o ajudar e ele dá-me funções vãs e futis mas que me dão um sentido de responsabilidade. Mas ontem tratou-me como a criança que ainda sou despachando-me visivelmente irritado. A causa de tudo isso sabia-a eu be, o que ainda me deixou mais frustrado e irritado. Agora mais que nunca sentia que tinha que descobrir o propósito das visitas do Sr.Miguel. Nunca o suportei pelo efeito que sempre tinha sobre os meus pais. A seguir às suas visitas tanto o meu pai como a minha mãe ficavam visivelmente afectados mas nunca me foi explicado o porquê. Nem o porquê das suas inoportunas visitas ou porque lhe era permitida a entrada na minha casa. E a minha ignorância trazia a sempre uma frustração inerente por não poder controlar ou sequer ajudar.
O barulho da porta a abrir trouxe-me de volta à casa do Professor Guerra levantando-me à medida que me virava em direcção à porta. Ao ver o meu tutor desejei não me ter levantado. Trazia uma cara desagradável muito pior à que o estalajadeiro deixava em minha casa.
Remoeu um «Bom dia» tentando abrir a sua fechada expressão num sorriso muito pouco convincente.Sentou-se à secretária visivelmente atrapalhado ao tentar acordar de um sonho muito pouco agradável.Quando finalmente ganhou balanço suficiente lançou-se sobre mim tentando de uma forma paciente ensinar-me.
Saí mas cedo ainda preocupado com a condição do Professor, e mesmo depois da desculpa que Amanda me deu de que o Professor chegara bastante tarde e muito cansado na noite anterior. À medida que caminhava para casa pensava numa forma descobrir as coisas estranhas que se passavam. Não o podia afirmar com a minima certeza mas achava que o estalajadeiro tinha algo a ver com a disposição do Professor. Ainda havia de descobrir...

segunda-feira, maio 23, 2005

Ele II

Olho o mundo lá fora. Escondo-me em frente à janela com a cortina a cobrir-me as costas para que ninguém me veja. Como se alguem me visse. Espero impacientemente que a noite caia. No pequeno espaço que serve de aconchego à janela deambulo para trás e para a frente com o nervosismo. Vão-me surgindo memórias foscas da noite de ontem. Mal consigo já voltar a reconstruí-las. Estão gastas e puidas de tanto uso lhes dar. E no entanto só foi ontem. Ontem ou hoje? O que importa? A distância na minha cabeça é enorme, nem em horas a consigo medir, nem em milhas. Nada.
De quase nada me recordo. O vulto negro, as mãos de madre-pérola, a voz doce e terna, o cabelo carregado a voar ao vento, um vento frio que ainda e gela a cara.
Ouço Amanda chamar-me para o jantar. Desço as escadas e sento-me na demasiado longa mesa e sinto o frio da solidão cair sobre mim. Duas velas criam cúpulas amarelas nas pesadas cortinas negras que a meu mando impedem a cinzenta luz melancólica de entrar. Faço sangrar a garrafa para o meu solitário copo enquanto espero a chegada do jantar. O vinho vai-me rodando no copo esperando a morte lenta da minha boca.
Chega o jantar e como no silêncio de sempre. O jantar sabe-me bem, como a um condenado prestes a ser enforcado, mas no meu caso é o oposto. A ansiedade de algo bom transforma a refeição no acto agradável que não o é a muitos anos.
Mal Amanda acaba de retirar a mesa corro a meu quarto para me preparar. Visto-me com detalhe e procuro a mais pequena falha que desarmonize o conjunto. Olho o espelho e esforço-me por fazer sair de lá uma imagem agradável. Espero que o consiga fazer diante dela.
Desta vez desço elegantemente as escadas tentando parecer o que me devia ser intrínseco. Olho o pêndulo e seguidamente o relógio.-Sete e meia murmuro baixinho para a caixa de vidro que guarda o tempo.
Mando Amanda chamar o cocheiro. A ansiedade é tanta que indo a pé corria o risco de desatar a correr a meio do caminho. Opto pela via mais sensata e discreta ao mesmo tempo.Ouço os cavalos lá fora e saio ponderadamente.
-Boa noite senhor. Como está esta noite?
- Estou muito bem Recta. - A excitação do cocheiro é bem patente e derivada ao facto de eu raramente fazer uso dele. Não por não simpatizar com ele porque é meu amigo desde miúdo altura em que me costumava contar como o seu pai ganhou o nome Recta por ser o único cocheiro que enjoava, e por isso só gostava de rectas, mas nunca gostei de fazer publicidade à minha riqueza porque nunca gostei dela.
Entro rapidamente dizendo o destino ao velho cocheiro. Enquanto atravessamos a vila ainda no crepúsculo tento esvaziar a mente e não parecer demasiado ansioso. Não sei se a espera vai ser grande ou sequer recompensada.Saio e despeço-me com um aceno. Caminho pesadamente tentado fingir aquele ar superior tão característico da minha posição social.
Com a preocupação nem reparo quando chego ao rio. Sento-me no banco frio e vou olhando o negrume dos sapatos que trago calçados. Hoje não comtemplo o rio, seria desrespeita-lo com um olhar apagado e encher a sua superfície com preocupações sem sentido.
Como uma repetição da noite passada ouço o rumor que se transformam em passos que esmagam o cascalho. Mas desta vez o ritmo ficou muito mais rápido. Olho para a sua fonte e vejo uma sombra delineada pela luz amarela do candeeiro que ilumina a entrada da rua. Tento ver um rosto ou delinear uma face mas tudo não passa de negro.
Enquanto espero que a imagem fique nítida penso apressadamente no que dizer caso seja ela. É ela. Veio ao meu encontro, tal como eu não esqueceu o nosso encontro de ontem. Ainda sentado acompanho a sua trajectória com os olhos esperando pacientemente que cruze a linha da luminusidade. Mas no limiar da escuridão vejo-a desaparecer numa queda brusca.
- Está bem? Peço imensa desculpa. Deixe-me ajuda-la a levantar-se.
Ela afasta-se nitidamente tentando não ferir mais o seu orgulho.
- Calculo que sim, fui uma queda feia. A sua sorte é que estava mesmo a passar por aqui. Reparei que ia com pressa. -digo eu tentando mostrar que o seu orgulho permanece imaculado.
Ela levanta-se e olha-me. Lembro-me de novo quem esperava. A cara que se me afigura é de uma beleza imensa e desejo que seja Beatriz, mas a minha malfadada experiência grita-me aos ouvidos que não é ela.
É demasiado bonita, demasiado interessante para vaguear à noite procurando companhia. Mulheres destas estalam os dedos e caem-lhes centenas de pretendentes aos pés. Não consigo disfarçar a minha desilusão e a reacção não tarda em chegar.
- Obrigado por tudo. Eu estou bem. Foi gentil de sua parte, mas tenho de ir agora.
Já não me olha, corre agora para longe O vento vem e vejo o negro dos cabelos a esvoaçar apressados. Nesse momento um raio atinge-me deixando o meu corpo em plena agitação. Imediatamente grito desesperado.
-Beatriz!
Por momentos penso que me enganei porque ela continua a andar, mas instantes depois estaca ainda virada para a frente. Fico como que em choque parado à espera de uma reacção.
Começo a andar na direcção dela, ela vira-se para mim e segurando-lhe a mão sem pensar despejo-lhe à face o que me vai na boca.
- Eu sabia que eras tu. Desde ontem que não consigo pensar em outra coisa. Por muito que me esforce só consigo trazer a memória instantes da noite de ontem. Por favor, deixa-me acompanhar-te até casa.
Não me responde, vejo uma faca a aproximar-se perigosamente do meu coração. Mas sem medo continuo a olhá-la no âmago.
A faca acaba por perfurar largando um "Desculpe-me" à medida que vai cortando a pele.
Ela deixa-me a sangrar e larga a correr sem me olhar. Desta vez não estou disposto a esperar. Cambaleando e sangrando do meu coração corro atrás dela, ela nem olha paratrás se calhar com medo, mas tudo o que eu quero é não a perder de vista. Corro mas ela leva-me já um avanço. Até que no dobrar de uma esquina a vejo entrar para uma casa, o que eu não contava era que fosse aquela casa.
Depois de ter passado algum tempo em frente ao edificio deixei-me levar pelo impulso. Entrei. Ainda vejo a Beatriz mas ela mais uma vez foge, desta vez para dentro da cozinha. Parecia surpreendida, eu não. Não estou surpreendido, estou em choque. Assim como ela viro-me e fujo, no preciso momento em que a cara gorda do estalajadeiro se sorri para mim. Corro, subo as ruas sem me cansar até chegar a casa. Entro e encosto-me à porta. Deixo-me escorregar enquanto me sento tentando respirar de novo.

domingo, maio 22, 2005

Ela II

Baixei a cabeça, como sempre fazia em situações destas, e numa sucessão de acenos temporalmente bem espaçados, fui dizendo “Sim padrinho” até ele se calar. Admito que desta vez abusei um pouco e pensava, honestamente, que teria de ir embora devido à minha fuga. Afinal foi bem mais simples que isso. Já com os cantos da boca cheios de saliva, e com a cara tão vermelha que parecia que ia explodir, ali estava ele, o padrinho, a dizer-me que, como castigo, ia ter de ajudar a Julieta na cozinha até segundas ordens. Muito bem, dirigi-me para a cozinha e dei um beijo barulhento na face da velha Julieta.
- Adivinha quem te vai ajudar aqui nos próximos tempos ? , disse-lhe eu enquanto ía roubando um pedaço de bolo que tinha acabado de sair do forno.
- Olha lá Clarita, ainda vais ficar doente e depois não te venhas cá queixar. Uma pessoa para me ajudar? Quem? Se for o Zé das Caldas avisa já o teu padrinho que não o quero cá. Da ultima vez que entrou na minha cozinha. Nem quero pensar, nem quero pensar...
- Não Julietita.
Brinquei eu com ela, brinco sempre pelo facto de ela me chamar Clarita. É a única pessoa que o faz e eu gosto. Alias tenho tamanha estima pela Julieta que seria impossível descrever. É como uma mãe para mim.
- Sou eu!
- Tu?!? Que fizeste agora? Aí meu Jesus, mas onde tens tu a cabeça. Sabes bem que o Sr. Miguel anda a ter muita paciência para contigo. Tem cuidado filha, toma atenção à vida. Aí meu Jesusito!
- Tem calma Julieta. Vai correr tudo bem. Corre sempre tudo bem, independentemente de como corra.
Disse-lhe eu a rir.
- Diz lá. Por onde começo?
- Olha filha, primeiro arruma o que compraste no mercado e depois quero que me faças um favor. A D. Adelaide pediu-me para lhe fazer uns bolinhos de laranja. Eu fi-los e agora há poucos dias pediu mais. Quero que lhos vás entregar, mas sem o Sr. Miguel saber.
- Então?
Desconfiei. A Julieta não era assim. Apesar de tudo fazer para ajudar todas as raparigas da estalagem, era sempre muito fiel ao Padrinho. Alias, há quem diga que foram apaixonados no passado e daí o facto dela trabalhar para ele há tanto tempo. Mas agora, pedir-me para fazer algo tão inocente de forma secreta fez-me estranhar.
- Sabes - disse-me ela – é que a D. Adelaide paga pelos bolinhos. E se isto se fica a saber, tenho medo de me mandarem embora, entendes?
- Entendo. Mas mesmo assim acho estranho. Já tentaste falar com o Padrinh... – fui interrompida antes de terminar a frase.
- Olha, se não queres ir diz-me logo, mas não me faças perder mais tempo, esta bem?
- Tem calma Julietita. Eu vou, claro que vou. Por ti faço tudo.
Dei-lhe um beliscão, ela resmungou e eu comecei a arrumar tudo.

Já era fim de tarde quando sai da estalagem. Tive de inventar uma desculpa, com a ajuda da Julieta, para pedir ao padrinho que me deixasse ir quando os fregueses começavam a chegar. Enfim, depois de muitos por favores e de lhe explicarmos que a minha ausência seria por pouco tempo, fui a cozinha buscar os bolos e sai.
Gostava muito de andar a esta hora pelas ruas. Quando o sol ainda está presente, num amarelo intenso e nos aquece pela ultima vez. Quando a lua começa a nascer, e o vento passa perto, soprando, em pequenas rajadas dissimuladas, frases de arrepiar. Gosto do frio. É muito mais solitário que o calor. É muito mais parecido comigo. Resolvi ir pelo caminho mais longo. Quero aproveitar bem o momento. Fui andando para o Jardim. No coreto alguns meninos brincavam em alegres correrias. Ainda estavam algumas pessoas a passear. Senhoras sentadas em bancos com poses muito direitas e estáticas, falavam baixinho entre si. Os Homens, mais alem, discutiam política e os mais velhos fumavam cachimbo. A medida que fui passando as senhoras interromperam a conversa e olharam para mim. Sabiam quem eu era e eu sabia que elas não me aprovavam. Para elas eu era como o vento. Não é desejado e se não existir, melhor ainda, pois pode estragar o penteado. Neste caso, a pose de senhoras de família. Digo isto porque alguns dos excelentíssimos esposos destas Senhoras tão finas já me conheciam mais intimamente. Não liguei aos olhares e aos comentários que, suavemente se podiam ouvir. Continuei a andar.
Cheguei a casa da D. Adelaide. Era uma mulher simples e simpática. Dava passinhos pequenos quando andava, era gordinha e muito baixa. Todo aquele quadro, apesar de ser feito de extremos físicos, dava origem a um ser extremamente acolhedor e engraçado. Ela era viuva, não era muito afortunada como outrora tinha sido, mas vivia feliz e apesar de tudo, tinha conseguido manter amizades fortes entre algumas Senhoras da alta sociedade que ainda lhe atribuíam um estatuto de Senhora fina.
- Boas tardes D. Adelaide. Aqui tem os bolinhos que encomendou a Julieta.
- Olá Clara. Aí que já nem me lembrava deles, mas deixa ver. Sim senhor, têm bom aspecto, disso não há duvidas.
Enquanto dizia isto, pegou num bolinho e começou a trinca-lo.
- Humm...que delicia. Que mãos divinas tem a nossa amiga Julieta. Oh, mas sentai-vos. Peço desculpa pela confusão mas o meu filho Daniel chegou ontem a tarde de viagem. Veio da capital, onde se formou advogado. É a luz dos meus olhos. Aí... Mas esperai aí um instante que vou buscar a paga pelos bolinhos.
Voltou instantes depois. Despedimo-nos enquanto ela ia continuando a dar dentadas no bolinho e sai deixando atras das costas um “ Até um dia destes” que me saiu espontaneamente.

Quando a porta da casa da D. Adelaide se fechou, reparei que já tinha escurecido e que as ruas estavam agora muito mais vazias. Comecei a andar. Sentia-me tão livre. Tão curiosamente feliz. Fui andando com um sorriso colado a cara. Daqueles verdadeiros e que não se podem evitar. Daqueles que surgem quando vou na rua e uma criança se vem meter comigo. Nessas alturas, e mesmo que não haja razão para um pingo de alegria, começo a sorrir e fico leve, inconscientemente leve. Gosto desses momentos que cada vez, com menos frequência, vão surgindo. Alturas em que vivo tão violentamente que chego a asfixiar-me. Alturas em que uma força maior do que eu nasce dentro de mim e me faz agir, mexer e sentir intensamente. Faz-me querer mudar. Faz-me querer viver mais, muito mais, cada dia e cada instante como se não houvesse amanha. Era assim que me sentia agora. A Julieta costuma dizer que isto passa com a idade e que chega a uma altura que já não queres fazer mais e melhor. Limitas-te a querer fazer e ficas contente por isso. Eu não vou ser assim. Sinto-o cá dentro que comigo vai ser diferente. O sino da igreja toca. Sete badaladas!! Meu Deus, o Padrinho Miguel vai esfolar-me viva. Começo a correr pelo caminho escurecido que tenho a minha frente, mas desta vez corto caminho e vou pela rua do Rio.
Corro tão depressa que só me apercebo do que se passa quando embato com a cara no chão.

- Está bem? Peço imensa desculpa. Deixe-me ajuda-la a levantar-se.
- Não. Está tudo bem, só estou um pouco tonta.
- Calculo que sim, fui uma queda feia. A sua sorte é que estava mesmo a passar por aqui. Reparei que ia com pressa.
Já de pé, tento compor-me e tentar olhar de frente para o Homem que me ajudou, sem demostrar o meu embaraço.
- Obrigado por tudo. Eu estou bem. Foi gentil de sua parte, mas tenho de ir agora. – digo eu enquanto vou olhando para o chão e me afastando lentamente. Que vergonha! Vou a correr, tropeço numa pedra e tenho logo de cair em frente a alguém. O pior vai ser o Padrinho. Oh meu Deus, desta vez não me vai perdoar! Tenho a certeza. Penso nisto enquanto me afasto do local da queda deixando o homem perplexo a olhar para mim. Subitamente, num tom de voz insegura oiço:
- Beatriz?
Demoro algum tempo até conseguir raciocinar, mas quando o faço páro imediatamente. O Homem de ontem a noite. Não pode ser! Como me reconheceu ele? Impossível, estava tão escuro...Viro-me para trás. Ele lentamente, tinha começado a andar em minha direcção. Até que chegou e me segurou na mão:
- Eu sabia que eras tu. Desde ontem que não consigo pensar em outra coisa. Por muito que me esforce só consigo trazer a memória instantes da noite de ontem. Por favor, deixa-me acompanhar-te até casa.
Eu não sabia o que dizer. Fiquei parada a olhar para ele. Aquele homem, ali a minha frente a dizer-me tanta coisa. Eu obriguei-me a esquecer aquele encontro atribulado. Nunca imaginei que o voltaria a encontrar. E agora ali estava ele a segurar a minha mão e a pedir-me para me acompanhar ate casa. Estava ali a olhar para mim nos olhos e agora eu conseguia ver como era alto, bonito e como o seu olhar me assustava. Invadia-me a alma de uma forma avassaladora. Sentindo a adrenalina a explodir no meu corpo disse-lhe “ Desculpe-me” e comecei a correr. Tal como ontem, penso eu. Parece que só sei correr. Fugir, fugir, fugir. Sempre fugir. A verdade é que aquele homem, aquele estranho, era muito mais que um estranho e que um homem qualquer. Era uma incógnita, uma onda de sentimentos que me transmitia sempre que estava por perto. Sentia-me fraca, tremia. Sentia o mais intimo de mim invadido por aqueles olhos castanhos que brilhavam devido ao reflexo da luz pálida da rua.
Cheguei a estalagem. Por sorte o Padrinho não estava por perto. A pobre Julieta já estava em cuidados, mas felizmente ninguém tinha dado por minha falta. A estalagem estava cheia como sempre. Muitos homens, muito vinho e muitas historias lançadas para o meio da mesa. Historias da vida e do Mundo que eram embaladas pelo calor que a lareira expelia. Eu comecei a trabalhar, como todas as noites a servir vinho de mesa em mesa. Era bom, podia ouvir as noticias do dia e os acontecimentos mais recentes, mas por outro lado tinha de ouvir também comentários que não queria e, quando o Padrinho Miguel me dizia, subir as escadas até ao andar dos quartos com um freguês que lhe tinha pago os meus serviços adiantadamente. Entre o meu rodopio por entre as mesas e os bancos corridos da estalagem reparo na porta. Vem alguém a entrar. Quando olho melhor nem quero acreditar. É ele! Aquele com quem me cruzei há pouco, o Ricardo, suponho eu, vem a entrar e eu ali. Corro para a cozinha.
- Julieta, deixa-me ficar por aqui, por favor.

sábado, maio 14, 2005

Acordo com o barulho da Sofia no quarto ao lado. Passa a vida a cantar. Como odeio a sua inocência.
Tudo não passa de jogos e pequenas brincadeiras. Eu é que acabo de ter de me preocupar com tudo, e se lhe falo nem me ouve.
Levanto-me e enquanto me lavo olho o tempo pela janela. Visto as minhas roupas. Tenho que dizer à maezinha que me compre umas novas, já não tenho idade para andar com estas roupas de criança. Desço as escadas e sento-me no sofá à espera do resto da familia para tomar o pequeno almoço. Já só me falta um ano para ser adulto, e então poderei ajudar o meu pai nos negócios. Serei o seu assistente pessoal, para tudo que precise.
Como por invocação surge o meu pai sempre bem-disposto, com um artigo na mão. Senta-se à mesa sem reparar em mim.
-Bons dias meu pai! Como se sente hoje?
-Positivamente bem!-a sua alegria é contagiante.
Sento-me à mesa e Sofia não tarda em aparecer. Corre a meu pai para o beijar e lança-me uma careta. No seu jeito infantil começa a brincar com os talheres enquanto esperamos por minha mãe.
Hoje tenho que a aturar mais do que é habitual. Ao contrário do habitual não suporto o fim-de-semana muito por culpa dela. Mas apendi já a lidar com a sua imaturidade, e felizmente sou-lhe superior.
A minha mãe chega com o ar pálido de sempre e faz soar a campainha frágil. Josefa prontamente
começa a servir o meu pai bem como os restantes. Comemos no silêncio habitual com o meu pai sempre absorto nos seus problemas. Por muito mau que sejam sonho em ter esses problemas. A minha vida inútil não passa de aprender velhos cadernos puídos cheios de um mundo que nunca verei. Também não o anseio. Quero mundo real a fervilhar de problemas, sem clarins a anunciar cada boa estocada. Quero um mundo cravejado de inquietações onde possa usar as minhas capacidades para tudo resolver.
-Paizinho, podemos ir passear no jardim público?
Olho imediatamente para meu pai na esperança que ele cumpra os meus desejos, mas ele responde com um vago sim para grande alarido da minha irmã.
Saio de casa farto de esperar minha irmã. Vejo aproximar-se o sujeito que mais desdenho na nossa vila. Vem na direcção da nossa casa. Sinto o desprezo a crescer no meu estômago à medida que ele se aproxima. Encontra-se à porta com minha irmã e ela sorrie-lhe inocente. A minha vontade agora era segui-lo e saber o que o traz de novo a nossa casa. Enquanto Sofia corre em saltos animados penso numa maneira de descobrir o mistério do estalajadeiro. Não demorará muito a ser desvendado, disso tenho a certeza.
Hoje sinto-me particularmente feliz. O negócio não vai bem, lá isso é verdade, mas já a minha mãezinha dizia não há nada melhor que um dia depois do outro. Por isso, estou com muita vontade de agarrar esta alegria para tentar resolver os meus problemas.
Sai da estalagem vestido com determinação e fui até a casa do Dr. Medeiros. Se havia alma que me podia ajudar, era ele e isso eu sabia-o muitíssimo bem. O Dr. Medeiros é o médico mais famoso da cidade. A sua popularidade deve-se não só ao facto de ser o único médico das redondezas, mas também ao estilo de vida que leva paralelamente as pomadas para as infecções e aos xaropes de hortelã que receita. Ele é, digamos, um apreciador da noite, da boa vida, do bom vinho e das boas mulheres, mas fá-lo com descrição. Mesmo assim, apenas algumas pessoas conhecem este homem verdadeiramente, e uma delas sou eu. Vou-me rindo enquanto penso no que sei. Ás vezes um criado tem mais poder nas mãos que o seu senhor. Eu tenho sorte de ter saído ao meu pai no que diz respeito a negócios. O meu pai vendia água-ardente rasca, de vila em vila, clamando com todo o seu teatralismo de que se tratava da cura para todos os males. Eu também sou assim. Uso o meu discurso macio, mostro-me pronto a obedecer, mas quando menos esperam, faço com que se deixem levar pela minha conversa, tal como o meu pai fazia.
Chego a porta da casa do Dr. Medeiros e verifico que dela vai a sair a mais nova dos seus dois filhos:
- Menina Sofia, bons olhos a vejam.
- Bons dias Sr. Miguel. Está muito bem disposto hoje. A que se deve tamanha felicidade.
- Oh minha Senhorita, lamento informar-lhe mas não é de sua conta. Mas não fique triste, chegue cá que conto-lhe um segredo. Estou assim porque hoje está muito bonita.
- Sr. Miguel, deixe-se de tolices que já tem idade para ter juízo.
Disse-me ela enquanto corava.
- Bem, se veio falar com meu pai, entre, entre…que ele está lá dentro. Agora eu, vai ter de me desculpar, mas o meu irmão está já ali a minha espera. Vamos dar um passeio até ao jardim. Aproveitar a linda manhã.
- Pois faz nada mais que bem menina. Até logo.
Enquanto dizia isto a Menina Sofia fez uma ligeira vénia e dirigiu-se para o irmão que já me olhava com ar desconfiado. Bati a porta da casa dos Medeiros e fui entrando. A Sra. Silvinha, mulher amargurada do Dr. Medeiros, veio rapidamente a meu encontro. Ela não tinha muito apreço pela minha pessoa devido ao que eu fazia para viver, mas também estava informada que eu mantinha negócios com o seu marido, e a este, ela não se atrevia a contradizer.
- Sr. Miguel. Veio cedo hoje. Por aqui, por favor. O meu marido está na biblioteca.
Acompanhei-a. Como era grande aquela casa. Salas e saletas, e mais quartos e candeeiros de cristal. Uma bela casa, sim senhor. Nunca me cansava de a olhar. Enquanto o faço vamos andando até a biblioteca. A Sra. Silvinha bate à porta, eu entro, e ela afasta-se e deixa-nos a sós.
- Sr. Miguel, ora como tem passado amigo?
- Muito bem Sr. Medeiros. Hoje então, acordei naqueles dias, sabe?
- Se quer que lhe fale a verdade, não sei muito bem o que quer dizer, mas fico feliz por si.
Rimo-nos os dois com cumplicidade. Ele oferece-me bebida, que recuso, e sentamo-nos afastados.
- Pois diga o que o trás por cá desta vez?
- Sabe como é…estou numa situação difícil, uma vez que tenho de administrar a sua estalagem e as vezes o que generosamente me dá, não chega para as despesas.
- Humm… mas este mês já é a segunda vez que cá me aparece a pedir alguma coisa. Agradeço-lhe que tome conta da estalagem por mim, mas como sabe, também é pago para isso, e ultimamente não tem desempenhado o seu papel muito correctamente, pois não?
- Tem razão, mas acredite que não é por falta de esforço. Mesmo ontem, houve briga. Partiram-me duas cadeiras e umas quantas garrafas. Foi algum prejuízo, mas nada que o Sr. Doutor não possa remediar.
- A questão, Sr. Miguel, é que não me agrada a forma como me vem pedir tantas vezes dinheiro.
- Doutor, tenha calma, pense nisto como um investimento. È muito melhor desta maneira, do que eu ter de ir embora, fechar a estalagem e toda a gente ficar a saber que ela é sua, e eu só a administrava para si.
Este meu ultima argumento, atingiu-o bem no fundo. Por dento eu sorria, porque tinha a certeza que depois do que disse, tudo ia correr como eu queria. Ele levantou-se da cadeira e foi até a gaveta da sua secretária. Aí sim, tive a confirmação da minha excelência. Bravo para mim. Bravo, bravo, bravo. Enquanto o Medeiros me entregava as moedas, pensava que, se ainda me sobrasse juventude, um dia iria dedicar-me ao teatro, afinal, sou um artista comprovado!

Sai da casa do médico. Quanto à Sra. Silvinha, essa nem a vi. Também não interessa, não passa de uma velha amuada. Enquanto pensava no que fazer com o dinheiro que me iria sobrar, vi a Clara. Aquela fedelha só me dá trabalho. Ontem saiu sem dizer nada a ninguém. Mas ela já vai ver como é. Afinal quem é que manda na estalagem?

sexta-feira, maio 13, 2005

Ela I

“A vida escolheu-me.” Penso nisto enquanto vagueio pelas ruas perdida em mim mesma. Penso na minha pouca sorte e na minha pouca fé. Nunca conheci os meus pais. Na verdade nunca conheci ninguém, nem mesmo a pessoa que se esconde dentro de mim. Aprendi desde cedo a resistir sozinha. Quando era pequena ainda sonhava. Era pura, sincera e apesar de não ter nada arranjava tudo só com a minha vontade de viver. Corria pelos becos mais sombrios e dava beijinhos as lavadeiras que me retribuíam com versos em minha honra e gargalhadas. O tempo foi passando e com ele instaurou-se a necessidade de pedir esmola à porta da Igreja todos os domingos. Era o único sítio onde se colhiam migalhas que as senhoras finas atiravam para o chão, na tentativa de salvar os pecados da carne. Agora já não tenho de ir ao domingo para a escadaria. Prometi a mim mesma que nunca mais imploraria aos pés de ninguém por uma moeda para ter que comer. Saiu-me caro o orgulho, pois para o sustentar tornei-me meretriz. Não fui eu que o escolhi, foi a vida que o escolheu por mim. Assim, todas as noites encontram-me homens velhos, porcos e famintos que vão até a estalagem onde, a muito custo, negociei um lugar para dormir todas as noites. Lá, procuram o que não têm em casa. Com umas poucas moedas de prata bebem vinho até o corpo não suportar mais e riem-se alto, tão alto que quase parece sinistro. Eu não passo de um produto que com cara de enterro, faz o que lhe é destinado sem nunca pensar, caso contrario tornar-se-ia insuportável.
Era tarde e fazia frio. Saí da estalagem cedo demais devido a uma briga que dois homens iniciaram por causa de uma desavença qualquer. Com medo do que poderia resultar dali, fugi escondida e agora deambulo no escuro. Avanço devagar pela rua calcetada e cheia de poças. O som do meu andar lento e pesado, como a minha alma, vai-se dissipando por entre a luz ténue dos candeeiros que iluminam o caminho. Não tenho pressa. Também não tenho para onde ir. Oiço um barulho e levanto a cabeça inconscientemente. Dois rapazes, pouco mais velhos do que eu e visivelmente embriagados, vão no sentido oposto, abraçados um ao outro para não se desequilibrarem. Passo por eles tentando não chamar a atenção, mas felizmente, nem me conseguem sentir de tão absorvidos que vão. Continuo o meu caminho. O vento agora tornou-se mais frio e por isso ponho o capuz da capa já velha e rasgada que trago vestida. Vou bafejando as mãos na tentativa de as manter quentes mas desisto. Se querem gelar até se tornarem cristal, que gelem! Acelero o passo e sinto o ar cortar-me a pele. Este penetra-me de tal forma que abre espaço para que uma angústia feroz me vá invadindo o pensamento. Subitamente oiço passos ao longe que me despertam da minha consumição. Escondo-me no escuro que a luz amarela que paira no ar não alcança. Observo sem fazer barulho. Até as minhas pulsações se calaram para não me denunciarem. O meu coração retraiu-se e bate depressa mas silenciosamente. Ao longe avisto um homem. Está sentado virado para o rio. Pelo que forço os meus olhos a ver, e pela postura que adopta ao sentar-se, aposto que deve ser de famílias abastadas. Como invejo a sua calma. Como invejo a sua descontracção. Como o invejo todo ele. Uma lágrima tenta saltar-me dos olhos, mas rapidamente a limpo para impedir que outras a sigam. Dou um passo para trás e no instante em que o meu corpo se impulsiona para voltar para a estalagem, surge-me a ideia: e se eu me fosse sentar ao lado dele? Poderia fingir que nos conhecíamos e que pertencíamos ao mesmo mundo. Poderia, por um instante, voltar aos dias de criança e sonhar acordada. Só um bocadinho. A ideia faz-me caminhar na sua direcção. A medida que me vou aproximando reparo que está a fumar. Isso cria uma nuvem esbranquiçada em seu redor e deixa escapar um cheiro diferente do que os homens têm na estalagem. Sento-me ao seu lado. Instantaneamente sou levada como por artes magicas para um outro lugar. Já não me sinto sozinha. Fico ali a olhar para o rio e sem que ele se aperceba vou-me chegando para lhe sentir melhor o cheiro. Quando dou por mim já o estou a tocar. Ele reparou e eu corei. O instinto faz com que eu me tente justificar. Digo-lhe que estou com frio. Pela reacção dele posso ver que não estava a espera que lhe dirigisse a palavra, mas mesmo assim responde-me com um início de conversa casual. Digo-lhe então para simplesmente fingirmos que já nos conhecemos na esperança de poder continuar o meu pequeno sonho. Para aumentar a fantasia, afirmo-lhe que me chamo Beatriz. Porque não? É nome de senhora fina e é assim que me sinto agora. Continuamos a conversar. Como é estanho este homem. Pensa de forma estranha. Diz-me que hoje se chama Ricardo simplesmente porque lhe apetece que assim seja. Silencio as minhas falas. A liberdade que ele transmite ao falar e ao dizer que cada um se pode chamar como quiser faz-me pensar muito. Principalmente porque eu mesma lhe disse que tinha um nome que na realidade não é meu. Fiz o que ele me fez, mas não com a mesma intenção. Sem eu estar a espera, ele fala sobre o rio e como gosta dele. Repentinamente um raio abate-se sobre mim. Que estou eu a fazer aqui? Levanto-me bruscamente. Não está certo viver algo que não me pertence. Nem está certo ser quem não sou. Assim, sem lhe dizer nada afasto-me apressadamente arrependida por me ter deixado iludir. Uma rajada de vento vem contra mim e afasta-me o capuz enquanto caminho. Volto a coloca-lo e começo a correr. Sinto muito frio e as minhas pernas já me doem, mas insisto um pouco mais, pelo menos até chegar a estalagem. As lágrimas que há tempo atrás tinha retido, começam então a escorrer-me pela face fria. Dou o que resta de mim à corrida e finalmente, após virar a esquina estreita, avisto a estalagem. Alguns fregueses ainda estão lá dentro. Bêbados resmungam consigo mesmo coisas que não quero entender. Passo a correr. Sinto uma mão agarrar-me o braço com força.
- Onde andaste? Esta noite deste-me prejuízo.
Após estas palavras, que nem tempo tenho de assimilar, um embate seco chega a minha cara e caio no chão, tamanha a força que trazia.
- É para aprenderes a não fugir a meio da noite. Tu trabalhas para mim e sem mim não és nada, ouviste fedelha?
Levanto-me a custo, baixo a cabeça, e ele vira-me as costas. Caminho para o canto onde durmo, junto da lareira. Aconchego-me a mim mesma e fecho os olhos.

O dia amanheceu claro. O frio que se fez sentir ontem desapareceu. Levanto-me e lavo a cara. Hoje é dia de mercado e como sempre, sou eu quem faz as compras. Vou ter com o dono da estalagem, o padrinho Miguel, como gosta que lhe chamem:
- Padrinho, hoje é dia de mercado e queria que me desse o dinheiro para as compras.
O padrinho Miguel vai a uma caixa de madeira e tira dela 3 moedas.
- Toma. Comprai-me tudo e desta vez não te esqueças de nada. Depois volta depressa que temos de falar sobre o sucedido de ontem. Agora vai fedelha e deixa-me.
Não lhe disse mais nada e limito-me a sair porta fora. O mercado estava cheio. Como gosto desta multidão destas gentes simples cheias de historias e sabores. O típico apregoar faz lembrar as lavadeiras da minha infância, por isso sempre que saio para o mercado tento demorar muito tempo, para aproveitar tudo até o mais exótico cheiro das especiarias orientais que vendem na banca que avisto agora ao fundo da rua.

Ele I

Uma gota esfria-me a face. A chuva ameaça mas não chove. Enquanto ando sinto o manto pesado da noite negra nos meus ombros. Encaro somente o chão, não quero ver se não o esplendor que me espera. Nas poças de água já abandonada vejo luzes amarelas que me cegam o chão. Só ouço os meus passos e o vento que me sopra das narinas. A ansiedade vai crescendo em mim como numa criança e há medida que chego mais perto vou aumentando o metrónomo no meu peito.
A certo ponto o coração dispara num estrondo e a adrenalina irrompe nas minhas veias. Apetece-me correr, apanhar cada pedaço de ar, correr, chegar por fim ao meu destino. Mas não corro, deixo que toda a ansiedade fermente para que no destino me possa alimentar dela. Já não falta muito. O suor cobre-me já o rosto. Sinto-me tonto de mascar ar sem engolir. As minhas pernas irrompem em chamas, o mundo começa a rodar, sinto-me tão tonto que tenho que levantar a cabeça.
Ai está ele, fluindo negro, polvilhado de candeeiros laranjas. Estaco e ouço as pequenas conversas com a margem. Aproximo-me sem tirar os olhos do negro que corre. Encontro o pousio e sento-me. Sorrio-lhe então e cumprimento-o com verdadeira amizade. O Douro responde-me com o eterno sussurrar, mas que me fala mais que palavras.
Venho de mãos vazias, nada lhe trago a não ser o que me povoa. Abro um garrafa de Vinho do Porto e faço-a cantar para o meu copo. Pouso o copo com um tinido e abro então a cigarreira metálica e retiro uma barra castanha. Acendo a cigarrilha e deixo que o cheiro me invada as narinas. O sabor amargo instala-se na lingua e combato-o com um doce gole do néctar vermelho. Deixo que os dois sabores se encontrem enquanto medito sobremim. A ansiedade transformou-se já em melancolia e tomo-a sofregamente. O momento solitário e belo, repleto de magia e unicidade.
Um rumor vindo de trás faz desaparecer o vinho e a cigarrilha, mas nem viro a cabeça. O rumor vai crescendo e ouço nitidamente o clamor das pedras esmagadas por sapatos pesados. O halo aparece primeiro imediatamente seguido de uma figura de capuz. Só vejo uma silhueta preta na parca luminosidade. Senta-se a meu lado, mas a alguma distância. O medo não vem porque nem penso nele, estranhamente sinto-me seguro. Olho pela canto do olho e vejo uma mão nitidamente feminina a pousar-se sobre os joelhos.
Escondo-me da vigia rodo a cabeça e observo com detalhe a mão. Nunca me impressionei por mãos, são meros apêndices, criados para cumprir ordens, as obreiras da razão. Mas estas sorriem-me. Brancas, alvas contra o fundo negro, esfíngicas guardam o charme numa imobilidade graciosa.
-Tenho frio.- o meu coração irrompe de surpresa com a voz que me atinge. Recuo para o interior da minha casca amedrontado.
Quando o silêncio volta a reinar eu saio lentamente para a noite. Faz frio. Na solidão estava bem a ouvir o rio lamentar-se, mas agora algo me puxa a garganta, silêncio torna-se insuportável e preciso de falar. Mas nada sei dizer.
Deixo escapar um «Olá». Ridiculo, uma idiotice. Não haveria algo mais inteligente para dizer do que um "olá"? Para meu alívio uma resposta surge.
-Não sei um nome para te dar, mas podemos fingir que já nos apresentamos e continuar...
-Continuar? pergunto ainda entorpecido pelo medo.
-Não gosto deste sítio. Olhar o rio faz-me querer partir. Faz-me pensar com seria fácil.
-Porque não o fazes?
-Talvez me chame Beatriz , mas ainda não sei. Talvez me chame Bia.
Viro de novo a cara ao seu encontro, tento traçar um perfil através do pano escuro.
-Não foste tu que te baptizaste, ou sequer escolheste que te chamassem josé, antónio, manel.Tudo porque não és tu que te chamas.
Sorrio e respondo a frase que tantas vezes me repeti.
-Mas podes dar-te nome, escolher um diferente todos os dias, mudá-lo conforme a tua disposição. É o teu nome não o que te chamam. Hoje chamo-me Ricardo.
O silêncio responde-me pesadamente. Estiquei-me demais sem testar a segurança primeiro, consigo ver a respiração plena de raiva a diluir-se no ar.
-Gosto deste sitio, tento eu amenizar, Só aqui eu sou verdadeiramente, aqui quando o rio me falo, o ar negro me ouve os lamentos e ninguém faz menos de mim.
Num segundo o vulto levanta-se e apressa-se a ir embora. O vento irritado com a isolência descobre-lhe a cabeça e vejo o negro dos cabelos a esvoaçar irritados. Já vai longe agora. Mas sei que voltará.